Dylan Dog Omnibus: Os Matadores

Os Matadores é uma crítica social pesada de Tiziano Sclavi em uma história cruel de Dylan Dog. Uma sociedade refém de um terror homicida onde assassinos podem surgir até nos lares mais “perfeitos”. O mal adormecido em cada um pode, se adequadamente estimulado, surgir com toda sua fúria.

A Confraria Bonelli está realizando matérias especiais sobre cada história que sairá no Omnibus de Dylan Dog publicado pela Editora Mythos. Com o intuito de aprofundá-las através das várias referências ao cinema e à cultura geral presentes na obra de Tiziano Sclavi.

Para cada matéria foi criado um cartaz de filme, do qual tem alguma relação com a história mencionada. Em “Os Matadores” o cartaz foi inspirado mais uma vez em um filme de George Romero. É “O Exército do Extermínio” (The Crazies), de 1973, do qual Sclavi se inspirou para criar sua trama homicida.

Dylan Dog – Os Matadores. Publicado originalmente em Dylan Dog – Gli Uccisori de 1º de fevereiro de 1987. Roteiro de Tiziano Sclavi, arte de Luca Dell’Uomo. Capa de Claudio Villa.

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Pode uma história de mais de trinta anos ainda ser social e politicamente atual? Relendo “Os Matadores”: certamente! Londres é invadida por uma onda de “violência e derramamento de sangue” (Violence and Bloodshed, como já dizia o Manowar no álbum Fighting the world), fobias desenfreadas, histeria coletiva, paranoia… Pessoas “normais” que de repente enlouquecem e, dominadas por um ímpeto incontrolável, matam qualquer um que esteja ao seu alcance, tornando-se os tais Matadores do título.

Não estamos nem na metade do primeiro semestre editorial de Dylan Dog, e Tiziano Sclavi já está em alto nível, firme em sua missão de revelar sua visão de mundo. De que o mal, a loucura, a centelha homicida está adormecida em cada um de nós e pode, se adequadamente estimulada, surgir com toda sua fúria.

O calor enlouquece homens e mulheres. E nada melhor do que o verão para sair matando. A estação convida a todos a sair de suas casas e se encontrar, mesmo na fria metrópole inglesa. Todos estão loucos, exceto um excêntrico Lord Inglês que bate à porta do Investigador do Pesadelo. Um dos personagens coadjuvantes mais queridos da série, Lord Wells.

Ele se apresenta como o inventor de um detector de maldade. Aparelho capaz de perceber a quantidade de mal presente nas proximidades. Munido de muito dinheiro e após irritar Groucho, o chamando de “mordomo” e “servo”, consegue chamar a atenção de Dylan.

Wells quer a ajuda de Dylan para impedir uma onda imparável de matança. O fim do mundo está praticamente sobre Londres e os meios de comunicação se aproveitam da situação para destilar mais medo na sociedade. Graças ao aumento da audiência e receitas recordes com publicidade, não medem esforços para aumentar o medo e a ansiedade da opinião pública.

Dylan e Lord Wells conseguem ligar a onda de assassinatos a uma sociedade secreta que tem o objetivo de criar uma nova ordem que os permita dominar o mundo. Segundo este grupo, é necessário obter o total controle e submissão da população e isso se consegue mais fácil e rapidamente através do medo.

Wells and Hells

David Niven.

Sir H. G. Wells é fisicamente inspirado em David Niven, ator inglês que ganhou um Oscar em 1959 por “Vidas Separadas”, mas que é muito lembrado por “Ingênua Até Certo Ponto” (1953) e “Vidas Separadas” (1958).

O nome é retirado do escritor Herbert George Wells, ou somente H.G. Wells, um dos pais da ficção científica moderna. Autor de numerosos romances como O Homem Invisível, A Máquina do Tempo, A Ilha do Doutor Moreau e Guerra dos Mundos.

A empresa responsável pela onda de loucura e morte chama-se Todd LTD. “Tod” em alemão significa “morte”. Também pode ser uma referência a Sweeney Todd, o lendário e suposto serial killer que operou em Londres no final do século XIX. Muitas obras de ficção foram dedicadas à sua figura. Entre elas o filme “O Diabólico Barbeiro de Londres” (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street), de 1936, dirigido por George King e estrelado por Tod Slaughter (de sobrenome singular que significa “Massacre”), um musical homônimo de 1979 e o filme musical de Tim Burton, estrelado por Johnny Depp.

Na página 54 aparece de relance o diretor Dario Argento. Na edição escrita pelo próprio Argento, publicada no Brasil em Dylan Dog Graphic Novel – Prelúdio para Morrer, ele comenta que seria inevitável não escrever uma história de Dylan Dog: “Comprei na banca uma edição depois que me falaram das citações de meus filmes nas histórias”, declarou o diretor de Suspiria e Profondo Rosso, do qual Sclavi é muito fã.

“Os Matadores” ganhou um jogo em 1992 para o Console Amiga, Commmodore 64 e MS-DOS. O jogo era acompanhado por uma história em quadrinhos inédita intitulada “O Retorno dos Matadores”, escrita por Sclavi com desenhos de Montanari & Grassani. Foi reimpressa em Dylan Dog Super Book #22, 10 anos depois. Os Matadores serve como um prólogo ao jogo.

Nesta história também vemos a estreia de Luca Dell’Uomo. Desenhista da Toscana que depois volta em Diabolô, O Grande, mas que deixa a série para ir trabalhar em Mister No. Um desenhista que ressalta os detalhes dos personagens, das ações e especialmente da cidade de Londres, com muita vida e publicidade nas ruas.

O homem é o lobo do homem

Sclavi tinha um objetivo muito claro com “Os Matadores”. Apresentar aos leitores a ideia de que o próprio homem é a causa principal dos seus problemas e que partindo desse ponto não há possibilidade de retroceder, apenas avançar rumo a um horror quotidiano sem fim.

Sclavi provavelmente se inspirou para esta história no filme de George Romero “O Exército do Extermínio” (The Crazies), de 1973. Onde uma arma bacteriológica causa uma epidemia de violência homicida em uma pequena cidade da Pensilvânia.

Survivors da BBC.

Além do filme de Romero, o editorial da primeira edição menciona a série de televisão britânica “Survivors”, exibida pela BBC de 1975 a 1977. O tema central do seriado é a luta pela sobrevivência de um grupo de pessoas que escapou da contaminação de um vírus misterioso que extinguiu cerca de 90% da humanidade.

Ernest Hemingway tem um conto chamado “The Killers”, de 1927, mas nada tem a ver com a trama de “Os Matadores” de Sclavi. Em “The Killers”, na época da Lei Seca, 1920, os assassinos Max e Al entram em um restaurante e depois revelam que foram mandados para matar um ex-lutador de boxe, que chegaria ao restaurante em breve.

Página de Mutus Liber.

Na página 91, Dylan e Wells mencionam o livro “Mutus Liber”, um livro mudo publicado na França em 1677. De autor anônimo, é um famoso livro alquímico e uma das mais belas produções do período medieval. O livro consiste de uma série de figuras que ilustram todo o trabalho alquímico.

Na página 84 Groucho nos informa quais são seus livros favoritos: A Bíblia, O Alcorão, O Capital de Marx, Todas as Histórias de Poe e Moby Dick de Herman Melville. Todos materiais volumosos que ele também usa como…colete à prova de balas.

Política nos meus quadrinhos!

O sequestro e o assassinato a sangue frio de Aldo Moro, Juiz italiano.

Como Dylan Dog é um quadrinho italiano que se passa em Londres, é difícil que o mundo italiano não reflita na Londres fictícia do universo do personagem. “Os Matadores” é uma das histórias mais políticas de Sclavi até este momento. A tensão em que a sociedade é colocada devido à violência que se instala, faz referências ao estado de tensão que a Itália viveu nas décadas de 70 e 80. Principalmente devido ao surgimento de grupos de extrema esquerda como as Brigadas Vermelhas, que foram as mais estruturadas e que tinham sindicalistas, juízes, jornalistas, policiais e líderes políticos na mira.

Mas a história também bebe muito da influência do governo neoliberal de Margaret Thatcher, a Dama de Ferro que exerceu o cargo de Primeira-Ministra do Reino Unido de 1979 a 1990. Thatcher transformava a economia britânica através de uma combinação de repressão política e liberdade empresarial. De 1984 a 1985 aconteceu a lendária greve dos mineiros, a última batalha do movimento operário na Grã-Bretanha, que após um ano de conflito, semelhante a uma guerra civil, foi derrotado pelo Estado.

Thatcher fez valer seu programa de fechar as minas, mas conseguiu mais do que isso. Daquele ponto em diante, todos os sindicatos do país sabiam que não era possível contestar o governo, e que o neoliberalismo e o enfraquecimento dos direitos trabalhistas estavam ali para ficar.

Policiais reprimem greve de mineiros. Inglaterra, 1984. Foto de John Sturrock.

Antes do confronto, os mineiros somavam 200 mil, espalhados por 130 minas de carvão. Hoje, não passam de 1.800, em apenas seis minas. Nenhuma trajetória expõe tão bem a visão econômica dos anos Thatcher quanto a dos mineiros britânicos, reduzidos a pó e por nada. Ou seja, os trabalhadores foram aniquilados pelos verdadeiros “Matadores” como uma “Nova Ordem” mencionada na história. Empresários que tiram vantagem e detém o controle da economia mundial, amparados pelo Estado.

A crítica à direita conservadora também aparece na história, como no primeiro assassinato que é na família modelo, com o pai que quer se tornar chefe da seção de transportes, a esposa, dona de casa perfeita e duas crianças loiras. Ou seja, o horror está até mesmo em locais que se dizem “perfeitos”.

O discurso de Todd na Câmara dos Lordes, mencionando que a doença iria se espalhar pelo mundo inteiro, “não é consequência natural da permissividade, do colapso de todos os valores, da anarquia desenfreada? Se não conseguirmos restaurar a ordem, seremos aniquilados”, destacando os que acham que tem a razão suprema e que suas ideias são superiores a todas as outras.

E por fim o anfitrião da festa no palácio que critica os bairros mais humildes como Soho e Islington, ressaltando Kensington, um bairro nobre de Londres. “Enquanto os mendigos se matarem, é melhor para nós!”

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  1. Do Vale

    Artigos excelentes estes das histórias do vindouro Omnibus. Contextualização além da mera resenha discorrendo sobre o que acontece em cada edição. Que esse republicação renda mais frutos!

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