
História publicada somente em Dylan Dog #3 da Editora Record, em 1991.
Chegamos à terceira história de seis, que sairão no Omnibus de Dylan Dog publicado pela Mythos. A Confraria Bonelli está realizando matérias especiais sobre cada história para aprofundá-las através das várias referências ao cinema e à cultura em geral presentes na obra de Tiziano Sclavi.
Para cada matéria foi criado um Cartaz de filme, do qual tem alguma relação com a história mencionada. Em “As Noites da Lua Cheia”, o cartaz foi inspirado no filme “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981), um dos preferidos de Dylan Dog, do qual ele já assistiu 14 vezes.

Como mostrado em Dylan Dog #1 – O Despertar dos Mortos Vivos.
Dylan Dog – As Noites de Lua Cheia. Publicado originalmente em Dylan Dog – Le Notti Della Luna Piena em 1º de dezembro de 1986. Roteiro de Tiziano Sclavi, arte de Giuseppe Montanari e Ernesto Grassani. Capa de Claudio Villa.
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Na capa, Villa não coloriu de vermelho a camisa de Dylan. Poucas vezes isso se repetiu em toda a série.
Destaque especial nesta edição é a estreia da dupla de quadrinistas Montanari & Grassani, ativos em Dylan Dog até o falecimento de Montanari em agosto de 2023. Uma grande perda para o quadrinho italiano e especialmente para os quadrinhos de Dylan Dog. “Sclavi e também outros roteiristas, pediam aos desenhistas coisas que beiravam o impossível. Por exemplo: um personagem é engolido pelo seu próprio quarto. Você pode escrever, mas o que significa graficamente? Montanari & Grassani conseguiam desenhar essas coisas impossíveis, graças ao estilo essencial e não realista”, destacou Gianfranco Manfredi no livro Making Of Dylan Dog (2007).
Em “As Noites de Lua Cheia” acompanhamos Dylan e Groucho investigando desaparecimentos misteriosos, lendas, testemunhos de aldeões aterrorizados. Na Floresta Negra, uivos distantes e mandíbulas bestiais atacam as presas. No internato feminino das irmãs Blucher, algo estranho está acontecendo e desconfia-se que seja culpa de Lobisomens! Dylan segue o rastro de uma garota desaparecida e, nas sombras da floresta, uma poderosa bruxaria o aguarda…
Poderia ser pior…

Marty Feldman como Igor.
No início da história, após uma transição nos quadros para os faróis do Fusca branco de Dylan, placas DYD 666, Dylan e Groucho estão na Floresta Negra, na Alemanha. Groucho deveria ter as feições do ator Marty Feldman, quando interpretou Igor no filme “O Jovem Frankenstein” (1974), de Mel Brooks. Claudio Villa, idealizador gráfico de Dylan Dog, após apresentar o estudo dos personagens para Tiziano Sclavi e Decio Canzio, teve que redesenhar tudo e substituir pela figura de Groucho Marx.

Estudos de personagem de Claudio Villa. À esquerda Groucho/Feldman. À direita Dylan…
Montanari & Grassani usaram fielmente a imagem de Dylan criada por Villa. “Fomos quase os únicos a usar como referência. Depois, com o tempo, encontramos a nossa própria versão, que é a que usamos até hoje”, destacam em entrevista na Edição Especial desta história publicada na Coleção: O Dylan Dog de Tiziano Sclavi.
Na página 15, quando Dylan pega a arma rapidamente para atirar no Lobisomem, é uma cena quase em câmera lenta. “O que me colocou em dificuldades foram os três quadrinhos para desempenhar uma ação. No início da série apareciam com frequência, para mostrar uma ação precisa”, ressalta Grassani. É uma das páginas menos convencionais da história.
A sequência profética de Groucho, logo após Dylan matar o lobo no início da história, remete ao famoso diálogo entre Gene Wilder e Marty Feldman no filme Frankenstein Júnior. Durante a cena da profanação da tumba, Dr. Frankenstein diz: “Que trabalho nojento”, “Poderia ser pior”, responde Igor. “Como?”, Pergunta o Doutor, “Poderia chover”, disse Igor, semelhante a Groucho, quando diz que um raio poderia cair sobre eles.
Os brasileiros nem percebem, mas os italianos nunca perdoaram. Dylan dirige o Fusca do lado errado! O motorista deveria estar à direita, como regem as normas de trânsito do Reino Unido.
Outra referência ao filme de Mel Brooks é a diretora do Colégio Feminino, Helga Blucher, assim como Frau Blucher, assistente do Barão Frankenstein. Além disso, o colégio feminino remete à escola de dança de Suspiria (1940), de Dario Argento, mostrado na sequência de abertura da história e que serve a Sclavi como cenário para a trama.
Em Suspiria de Argento, uma estudante americana de balé chega à conceituada academia alemã que a aceitara para iniciar seus estudos, mas logo se dá conta de que a escola é uma fachada para um mundo de assassinatos e bruxaria.

Suspiria, 1977.

Cloris Leachman como Frau Blucher em O Jovem Frankenstein.
Lobisomens Americanos e Stephen King
“As Noites de Lua Cheia” é inspirado em vários filmes e romances pertencentes ao gênero de terror com Lobisomens, ou licantrópico. Cronologicamente, o mais próximo do lançamento da edição é “A Hora do Lobisomem” (1985), baseado no romance homônimo de Stephen King, Cycle of the Werewolf.
Nesta obra de King, na pequena cidade de Tarker’s Mill, que sempre foi um lugar pacato até que terríveis e violentos assassinatos começaram a acontecer. Os habitantes locais acreditavam que o responsável pelas mortes seja um psicopata à solta. Porém, um garoto de 11 anos chamado Marty (Corey Haim) acreditava que os assassinatos não estavam sendo causados por uma pessoa, mas sim por um lobisomem. Com a ajuda de sua irmã, Jane (Megan Follows), o jovem consegue escapar e decide ir atrás do monstro.
O filme do francês Éric Rohmer tem o mesmo título que a história brasileira, “Noites de Lua Cheia” (1984), e o título original é “Les nuits de la pleine lune”, mas nada tem a ver com Lobisomens.
Aproveitando, na mitologia grega, existe a história do rei Licaão da Arcádia, que fez Zeus comer as vísceras cozidas do próprio filho. Para puni-lo, o deus o transformou num lobisomem. É dele que vem o termo “licantropia” (a habilidade mágica de se transformar nessa criatura).
Já “Um Lobisomem Americano em Londres” e “Gritos de Horror” (The Howlling), ambos de 1981 tem várias referências na história de Sclavi. São obras que relançaram a figura do Lobisomem no imaginário popular. Na história, a transformação do lobo inspira-se na de Um Lobisomem Americano em Londres, com a sequência desenhada quadro a quadro buscando reproduzir em tempo real, como foi feito no filme. De Gritos de Horror, Sclavi pode ter tirado a ideia do clã dos homens-lobos.
Em Lobisomem Americano em Londres, filme de John Landis, somos apresentados aos amigos David Kessler e Jack Goodman que viajam dos Estados Unidos para conhecer a Inglaterra. Chegando em uma pequena cidade, eles vão ao bar e são friamente recepcionados. A situação piora quando Jack pergunta o porquê do local ter velas e um pentágono na parede. Ao saírem, eles caminham por uma estrada deserta e percebem que um animal está os cercando. Jack é atacado e tem seu corpo dilacerado, enquanto David fica apenas com cortes no rosto e nos ombros, o suficiente para transformá-lo em um lobisomem.
O clássico, “O Homem Lobo” (1941), com atuação magistral de Lon Chaney Jr., estão espalhadas por toda a história. O filme e o próprio Lon são citados por Rudy, dono da pousada na página 41. Além disso, algumas imagens dos lobos presentes na história, parecem inspiradas em Gmorg, o lobo negro que persegue Atreyu em “A História sem Fim” (1984).

Lon Chenney em O Homem Lobo.

Gmorg de A História sem Fim.
Coadjuvantes especiais
Otto, o garoto com deficiência intelectual que trabalha no internato, lembra muitos assistentes de médicos malucos ou monstros dos clássicos filmes de terror. Mas Otto pode ser considerado o protótipo de Gnaghi, companheiro de Francesco Dellamorte no romance de Sclavi “Dellamorte, Dellamore” de 1991 e do filme de Michele Soavi de 1994.

Gnaghi em Dellamorte, Dellamore
Os personagens coadjuvantes de “As Noites da Lua Cheia” são inspirados em filmes, ou grandes personalidades como o Inspetor Durrenmatt, que investiga em paralelo junto a Dylan. Seu nome é uma referência ao escritor suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), que renova o gênero policial ao escrever, A Promessa, que leva o subtítulo Réquiem para um romance policial.

Inspetor Durrenmatt.
O nome da menina desaparecida é Mary Ann Price, uma homenagem ao ator americano Vincent Price. Protagonista de muitos filmes de terror, especialmente em sua última interpretação, a do criador de Edward em “Edward Mãos de Tesoura”, de Tim Burton.
Mas você deve se lembrar dele quando interpretou a voz satânica no final da música “Thriller”, de Michael Jackson.
Nazistas não por acaso
Tal como acontece no primeiro volume de Dylan Dog, onde a narrativa central dos acontecimentos acontece em Undead (Morto Vivo), no volume três a história acontece na vila de Wolfburg, em alemão “Castelo dos Lobos”. É bem provável que além dessa brincadeira com o nome, Sclavi a tenha nomeado assim, semelhante à cidade de Wolfsburgo, cidade onde nasceu a Volkswagem no tempo dos nazistas (1937). E até por isso a maior participação do Fusca de Dylan na história.
Outro fato é o dono da pousada, Rudy (que em alemão devia-se escrever Rudi), com um bigode hitlerista ele odeia estrangeiros. Mas não estrangeiros como Dylan, que como diz ele, “é um estrangeiro da “Anglaterra””, mas sim dos estrangeiros que vivem na floresta. “chamamos de estrangeiros os que vem da floresta de vez em quando… homens nunca visto antes, nascidos do nada… nus ou vestidos em farrapos… e eles são maus!”, ressalta Rudy. Não é preciso ir longe pra notar que trata-se de racismo contra imigrantes de países de terceiro mundo, ciganos, etc…
Na página 46, Alexandra, uma garota do internato que ajuda Dylan menciona o Barba Azul, protagonista homônimo do conto de fadas escrito por Charles Perrault, que apareceu pela primeira vez na coleção “Contos da Mamãe Ganso”, de 1697. Em O Barba Azul, um conde muito feio casava e matava suas esposas em seu castelo. Após casar com a filha caçula de um de seus vizinhos, ela descobre o segredo do conde e é salva por seus irmãos.
Dança com Lobos

Imagem da menina Kamala.
A sequência final, que mostra uma criança criada por lobos refere-se primeiramente a Mogli, do clássico “O Livro da Selva” de Rudyard Kipling, imortalizado na animação de Walt Disney, “Mogli – O Menino Lobo” (1967). E também inspirado em casos de crianças criadas por animais, o mais famoso talvez seja das meninas da Índia Amala e Kamala. Também conhecidas como as meninas lobo, foram encontradas em 1920. A primeira delas tinha um ano e meio, vindo a falecer um ano mais tarde. Kamala, no entanto, já tinha oito anos e viveu até 1929. Elas agiam como filhotes de lobo, de forma incomum.

Cena do filme Among Wolves, de 2010, que conta a história de Marcos.
Cronologicamente, a história mais próxima do ano da publicação da história de Sclavi é a do espanhol Marcos Rodríguez Pantoja, que quando criança viveu, entre as décadas de 1950 e 1960, em completo isolamento nas montanhas da Serra Morena, na Espanha. Seu pai o vendeu como escravo para um pastor eremita, que quando veio a morrer, deixou a criança sozinha com apenas sete anos. Marcos fez de tudo para sobreviver nos arredores de Serra Morena, onde seguiu para as montanhas onde bebia leite de cabra, comia raízes e passava a maior parte do tempo com uma matilha de lobos.
Outro final Explosivo!
O final desta história é incrível. A bruxa terrível conta seu plano antinatural, (SPOILER) onde as irmãs Blucher fazem com que as meninas do internato acasalem com as criaturas meio homem e meio lobo para gerar uma nova e poderosa raça híbrida. O que seria uma história clássica de terror de lobisomem, na realidade é uma ferramenta que Sclavi utiliza para conduzir a sua batalha pessoal contra a violência contra os animais e os experimentos em seres vivos.
As irmãs Blucher são um símbolo do desejo do homem de se esforçar para além dos limites impostos pela razão. Querer substituir Deus e submeter a natureza aos seus próprios interesses. Dizer NÃO aos experimentos com animais era muito à frente de seu tempo e ainda hoje luta-se contra isso.
Dylan e Sclavi em proteção aos animais

Sclavi (à direita) com o cardiologista veterinário Roberto Santilli que salvou seu cão e o apoia na Fundação Otto.
Sclavi mora na província de Varese, com sua esposa, sete cachorros e dois gatos. Ele criou a Fundação Otto, para oferecer tratamento gratuito para cães e gatos portadores de doenças cardiopulmonares. A fundação leva o nome de seu cão da raça dachshund, Otto, salvo de uma pneumonia gravíssima graças a uma terapia baseada em uma medicação com ventilação assistida. Uma terapia muito cara e pouco difundida. “Minha esposa e eu nos dedicamos há anos e agora quase exclusivamente ao cuidado e proteção dos animais”, disse Sclavi.
Dylan Dog participa há anos de muitas campanhas em prol da defesa dos animais. Especialmente no verão, quando as pessoas vão para a praia e abandonam seus animais.

Ilustração de Nicola Mari.

Ilustração de Paolo Bacilieri.
Depois de seis anos, auxiliado pela primeira vez por Mauro Marcheselli, Sclavi escreveu a sequência dessa história, com desenhos de Montanari & Grassani. Ela foi publicada originalmente no volume 72 e no Brasil publicado pela Mythos em Dylan Dog #31 – A última lua cheia.
Em Dylan Dog o terror é somente a camada superficial. Sclavi, um gênio, coloca tantas camadas que a cada vez que fuçamos conseguimos achar mais coisas. Somente nesta terceira história ele já nos traz licantropia, bruxaria, nazismo, preconceito, ciência, além de cinema, cultura alemã, exploração de meninas, maus tratos contra animais, etc… E principalmente, a cereja do bolo de Dylan Dog: o horror verdadeiro que é provocado pelos próprios seres humanos.
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