Com chegada prevista para agosto, a Editora Mythos está lançando o Omnibus de Dylan Dog. 604 páginas que trazem as seis primeiras histórias do personagem. Histórias estas publicadas no Brasil em 1991 pela Editora Record e que já não se encontram facilmente. Apenas a primeira edição, “O Despertar dos Mortos Vivos” foi republicada pela Conrad em 2001.
Por isso, para este momento histórico do personagem no Brasil, a Confraria Bonelli irá publicar uma série de matérias especiais aprofundando mais estas histórias através das várias referências ao cinema e à cultura presentes na obra de Tiziano Sclavi, além de suas próprias referências pessoais que ele inseriu em Dylan Dog.
Especialmente no primeiro volume, existem além das referências para a história, as referências para a criação do personagem e seu mundo. Por isto este texto ficou muito, muito grande.
Para cada história foi criado um Cartaz de filme, do qual tem alguma relação com a história mencionada. Neste primeiro, por exemplo, é o cartaz original de “A Noite dos Mortos Vivos” (1968) de George Romero. As obras do diretor foram inspirações para todo o clima da primeira edição de Dylan Dog.
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Dylan Dog – O Despertar dos Mortos Vivos. Publicado originalmente em Dylan Dog – L’Alba dei Morti Viventi em 1º de outubro de 1986. Roteiro de Tiziano Sclavi, arte de Angelo Stano e capa de Claudio Villa.
O primeiro e lendário número de Dylan Dog abre com um prólogo cinematográfico impecável: Sybil Browning é perseguida e por pouco não escapa do seu falecido marido, que se tornou um zumbi. Ela consegue sobreviver ao ataque e procura a única pessoa que pode ajudá-la, um detetive que toca clarinete e cultiva uma paixão por monstros e mistérios. O Investigador do Pesadelo Dylan Dog, e seu inseparável assistente, Groucho. Juntos, os três investigam o porquê do marido de Sybil ter se tornado um zumbi e vão até a Escócia em busca de outro cientista: Xabarás.
Sclavi já nos apresenta muitas das características que o investigador carregará consigo durante boa parte de sua carreira. Descobrimos imediatamente que ele é vegetariano, irônico, autodepreciativo (mas sério nos momentos críticos), brilhante, tão imprudente que não separa seus relacionamentos profissionais dos particulares (ir para a cama com clientes é quase normal), pobre e cético (até certo ponto, ele é alguém que “não acredita, mas espera que sim”) apesar de sua profissão particular.
Tem uma exclamação típica: “Judas Dançarino!”. Que originalmente vem do jornalista Gianluigi Gonano, que traduziu histórias de fantasia e ficção científica para as edições Gamma, entre as quais estava Allamagoosa. Uma história de 1955 de Frank Russell cujo protagonista exclamava muitas vezes, precisamente: “Josafá Saltitante!”. Sclavi, entusiasta de ficção científica se inspirou nesta expressão para criar a de Dylan.
Cinéfilo apaixonado pelo gênero terror, Dylan também tem fama de charlatão, difundida pelos jornais ingleses. Ele dirige um Volkswagen Maggiolino Cabriolet (Fusca conversível) branco, e tem o hobby de construir um molde de um galeão que nunca termina. Seu honorário é de 50 libras por dia mais despesas (taxa ajustada no futuro).
E o nome? Dylan Dog (Dilan, não Dailan), foi criado por Sclavi quase que por coincidência. Dylan foi simplesmente retirado do nome do poeta galês Dylan Thomas. Já Dog, ao passar pela vitrine de uma loja, se impressionou com o título de um livro: “Dog figlio di”, de Mickey Spillane. Sclavi nunca chegou a comprar o livro e nem leu. O Investigador do Pesadelo originalmente deveria ser um detetive atormentado e durão que morava em Nova York, mas a equipe editorial da Bonelli estava em busca de ideias mais originais e pressionou Sclavi a refazer o roteiro. O resto é história.
A capa e os Mortos Vivos

Poster que inspirou Villa para Dylan n.1.
Na capa da primeira edição, mãos em primeiro plano, erguem-se do chão para agarrar um homem que se destaca e detrás dele a lua cheia. Atrás dele, outras figuras estão prestes a pegá-lo em um abraço mortal, são os mortos vivos ou zumbis. Uma situação desesperadora para o que viria a ser conhecido como Investigador do Pesadelo, mas que por enquanto nos é apresentado pelo título: Dylan Dog.
Os zumbis voltaram à moda com o diretor George A. Romero em 1968 em A Noite dos Mortos Vivos (Night of living Dead), e foi onde surgiu a inspiração para a capa, desenhada por Claudio Villa e que também é o responsável pela criação gráfica do personagem. Villa se baseia em um dos cartazes do filme. Porém, Sclavi tirou as referências para a primeira história de Dylan Dog do filme “Dawn of the Dead” (1978), o segundo de seis filmes em que se consiste a franquia dos mortos vivos.
Na Itália, o segundo filme é mais conhecido como “Zombi”. No Brasil, “O Despertar dos Mortos”. O primeiro filme, realizado com baixíssimo orçamento, foi um enorme sucesso e a sequência foi co-produzida pelo diretor italiano Dario Argento para a distribuição na Europa e Japão. Argento fez alterações substanciais ao filme, cortou muitos diálogos, reduzindo as cenas em cerca de dez minutos. Na música, creditou-se como autor, junto a banda Goblin, da qual participou de vários filmes de Argento. Dario, do qual Sclavi é muito fã, anos depois acabou até mesmo escrevendo uma história para Dylan Dog, “Prelúdio para Morrer”, publicado pela Mythos em 2019.
Na primeira edição de Dylan Dog, “Zombi” é mencionado explicitamente, além das várias homenagens ao longo da edição. Na página 29, Dylan, Sybil e Groucho estão no cinema, para assistir a um festival de cinema de terror. A página abre com uma sequência do filme de Romero, em que se pronuncia a frase mais famosa: “Quando não houver mais lugar no inferno, os mortos caminharão pela terra”. Além disso, Dylan, apaixonado por filmes de terror repreende Sybil: “Não se atreva mais a chamar os “Zombies” de Romero de lixo!”.
No Brasil isto se perde um pouco, devido às traduções. Na edição da Record, Dylan diz: “E nunca mais chame de nojeira o Zumbi de Romero!”. Enquanto que na edição da Conrad ele diz: “E nunca mais chame de nojeira “A Noite dos Mortos Vivos” de Romero!”. Ou seja, um traduziu mal a questão de “Zombie” ser na verdade o nome do filme italiano “O Despertar dos Mortos”. Enquanto que o outro citou na verdade, o primeiro filme da franquia. Totalmente aceitável, porque ainda hoje com internet, é difícil colher informações precisas sobre estas curiosidades.
Dylan é Rupert, Rupert é Dylan
Dylan é graficamente inspirado no ator inglês Rupert Everett, que na época estrelou seus primeiros grandes sucessos como Another Country (1984) (No Brasil, Memórias de um Espião) e Dancing with a Stranger (1985) (No Brasil, Dançando com um estranho). Mas Villa não deixa muito claro esta semelhança na capa. Ela é mais evidente no traço de Stano, principalmente quando, em close-up Dylan parafraseia o espião inglês James Bond ao se apresentar: “Meu nome é Dog, Dylan Dog”. Everett interpretaria outro personagem de Sclavi, Francesco Dellamorte em 1994, no filme Dellamorte Dellamore, de Michele Soavi, baseado no livro homônimo de Sclavi.

Rupert Everett em Dellamorte, Dellamore.
O traço de Angelo Stano, como se sabe, remete fortemente ao estilo do pintor austríaco Egon Schiele, cujo retrato de Erich Lederer, de 1913 apresenta sugestivas semelhanças ao herói da Bonelli.
O Endereço do pesadelo
As referências cinematográficas continuam. Dylan mora e trabalha na Craven Road n. 7. Uma homenagem ao diretor americano Wes Craven, conhecido pela saga A Hora do Pesadelo (1984) e que, apaixonado por quadrinhos, dirigiu em 1982 o filme do personagem da DC Comics, Monstro do Pântano, criado por: Bernie Wrightson e Len Wein.
Em entrevista ao The Guardian, Sclavi diz que nunca esteve em Londres, pois como Dylan, tem claustrofobia e medo de avião. “Escolhi o número sete para a residência de Dylan porque é um número mágico, e o nome da rua é uma homenagem ao cineasta de terror e ator Wes Craven. Anos depois, um ilustrador que morou em Londres me disse que Craven Road realmente existe”, comentou Sclavi. Por coincidência, a Craven Road fica a menos de um quilômetro da Baker Street, 221B, famosa casa de outro detetive inglês, Sherlock Holmes.
“Dylan e Sherlock são muito diferentes, mas com algumas coisas em comum. Pensei em Holmes quando Dylan precisava tocar um instrumento musical e escolhi o clarinete em vez do violino, que era o instrumento de Holmes”, explicou Tiziano e complementa, “e ao invés da solução de sete por cento, (onde Holmes se injeta cocaína na concentração de 7%), eu fiz meu personagem ser um alcoólatra em recuperação”.
Outro elemento que Sclavi acrescenta é que Holmes depende totalmente da dedução, Dylan prefere seguir o instinto, ou seu “quinto sentido e meio”. Holmes é um violinista amador, e Dylan sabe tocar apenas uma música em seu clarinete, O trilo do Diabo, de Giuseppe Tartini. Outra diferença é que Holmes beira a misoginia e tem dificuldades em cultivar relações afetivas, Dylan muito pelo contrário, se apaixona por uma mulher a cada episódio.
Pequenos grandes detalhes
A campainha barulhenta da casa de Dylan é uma homenagem ao filme Dinner Party, de 1976. No vídeo com um trecho da versão italiana do filme, é possível escutar o som da campainha no minuto 2:59. Este filme, uma paródia do clássico gênero policial, tem a extraordinária participação do escritor Truman Capote, autor de A Sangue Frio, em sua única e verdadeira interpretação cinematográfica.
Em 2004, em entrevista ao programa “Antistoria del fumetto italiano – Il caso Dylan Dog”, para o canal Cult Italia Network, Sclavi conta que o Fusca conversível, ou como é chamado na Itália, Maggiolino Cabriolet, foi o primeiro veículo que teve, e que acabou se tornando o carro de Dylan também. “Eu gostava muito deste carro, percorri mais de 130 mil quilômetros com ele. Embora deva dizer que era um veículo que eu não devia ter comprado pelas minhas ideias políticas. Na época era o carro de jovens fascistas”, comentou Sclavi. Lembrando que o Fusca, um dos veículos mais populares do planeta, nasceu em 1934 em plena Alemanha Nazista. Foi projetado pelo engenheiro automotivo austríaco Ferdinand Porsche, encomendado por Adolf Hitler.
A mesa de escrivaninha de Dylan é a mesma em que Sclavi trabalha. E o galeão que Dylan monta, é um galeão que Sclavi também tem, mas fica guardado em seu porão. É uma versão do HMS Victory, de 1765. Foi a nau capitania do Almirante Horatio Nelson, Comandante da Frota Britânica que derrotou a Esquadra Franco-Espanhola na Batalha do Cabo Trafalgar, durante as Guerras Napoleônicas. Em Dylan Dog, ao longo dos anos descobrimos que o navio é uma ligação ao passado, presente e futuro do personagem.

Batalha de Trafalgar. Quadro de JMW Turner.
Freaks e Fantasmas
O sobrenome de Sybil é Browning, assim como Tod Browning, diretor do filme Freaks, de 1932, além de Drácula de 1931, estrelado pelo carismático Bela Lugosi. Ao conversar com Sybil, Dylan coloca no toca-discos o tema musical de Caça Fantasmas, de 1984, de Ivan Reitman, interpretado por Ray Parker Jr.
O escritório de Dylan nos apresenta entre os discos um do compositor russo Modest Petrovič Mussorgsky, assim como, atrás do investigador, é exibido o pôster do filme The Rocky Horror Picture Show.

Robert Morley.
Na página 26 é apresentado o Inspetor Bloch, inspirado graficamente no ator inglês Robert Morley, que estrelou uma centena de filmes entre 1938 e 1990. O sobrenome Bloch, é uma referência ao escritor Robert Bloch, conhecido pelo seu livro Psicose, imortalizado nos cinemas por Alfred Hitchcock em 1960. O primeiro nome do Inspetor é Sherlock, uma clara referência a Holmes.
O título do segundo capítulo da história é “The Horror”, que se refere ao romance “Heart of Darkness” de Joseph Conrad, que inspirou o sucesso de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now, e em particular ao monólogo de terror do Coronel Kurtz.
Groucho Marx Show
Mas, não falamos ainda da principal e mais óbvia homenagem à história do cinema em Dylan Dog: Groucho. O assistente de Dylan tem o nome e a aparência do comediante Groucho Marx, mais conhecido pelo grupo de comédia dos Irmãos Marx, em atividade do final do século XIX ao final da década de 1940.
Groucho é seu companheiro, seu melhor amigo, assistente e funciona como alívio cômico, uma metralhadora de piadas non sense: “Ele já foi comediante. Talvez você já o tenha visto em algum filme”, comenta Dylan. O comediante faleceu em 1977 e é de certa maneira mágico vê-lo com tanta naturalidade em um quadrinho seriado. Sua grandeza vai além do espaço tempo.
Por problemas relacionados aos direitos autorais do personagem, na edição americana de Dylan Dog publicada pela Dark Horse, Groucho não tem seu icônico bigode e é chamado.. Felix! E nem está presente no esquecível filme de 2010 de Dylan Dog, substituído por Marcus Adams, interpretado por Sam Huntington.
Xabaras Abraxas
O nome do grande vilão da primeira história, Xabaras, é um anagrama para Abraxas, um dos nomes do diabo como deduz Dylan. Na realidade, Abraxas tem uma origem incerta, com base no misticismo gnóstico e somente para se opor a isso foi associado à figura do diabo pelos padres católicos.
Xabaras grita ao patologista Archibald Potter (mesmo nome do compositor irlandês): “Não abra essa porta! Não abra!”, e o homem responde, “E porque não deveria abrir esta porta?”, não seguindo seu conselho e libertando um grupo de mortos vivos. Uma referência ao filme O Massacre da Serra Elétrica (1974), do diretor Tobe Hopper.
Além disso, Undead, a cidade escocesa onde acontece a parte final da história, é o título em inglês do filme The Undead (1957), de Roger Corman, com tema também em zumbis e que a tradução literal é “morto vivo”, claro.
Quando Dylan encontra Xabaras em sua casa, ao lado de um cadáver deitado sobre uma mesa de operação, ele grita: “Posso devolver-lhe a vida!”. Uma referência a Frankenstein de Mary Shelley. Mas ao invés de descargas elétricas, Xabaras usa um soro moderno, que no entanto transforma suas criaturas em monstros famintos por carne humana, exatamente como aconteceu no filme Re-Animator, de 1985, de Brian Yuzna e do conto original de Lovecraft, publicado de 1921 a 1922.
Na página 57, Xabaras menciona a si mesmo como: “Eu sou a lenda”. Referência à obra do escritor Richard Matherson, que inverte a obra de Drácula de Stoker, imaginando um mundo onde todos os homens se transformam em vampiros, exceto um. Já foi adaptado várias vezes para o cinema, sendo a primeira em 1964, no filme O último Homem, estrelado por Vincent Price. Em em 2007, estrelado por Will Smith.
Não confirmado, mas Xabaras poderia ter sido inspirado no Dr. Frederick Treves, interpretado por Anthony Hopkins no filme Homem Elefante (1980), de David Lynch.
Conclusão explosiva
O roteiro da primeira história é denso e cheio de ação, mesmo sendo apresentado em um enredo clássico, mas com muitos diálogos frescos, irônicos e ainda atuais. Uma atenção quase obsessiva para com os personagens em cada quadro em um ritmo apertado. Existem numerosos momentos de terror que embelezam a história. Tesouras nos olhos, ressurreições à moda antiga de túmulos de cemitérios, ressuscitações de corpos nus no necrotério…
Além de momentos inesquecíveis como a viagem de trem e a fuga para a cidade de Undead, onde presenciamos o momento favorito de muitos leitores que é a viagem de bicicleta. O final “explosivo” ainda gera polêmica entre os fãs, mas vamos considerar que ainda se tratava de uma evolução do personagem.
É uma edição muito importante e um marco na história dos quadrinhos italianos. E com a chegada do Omnibus, um novo marco para o personagem no Brasil.